O Código-Fonte da Humanidade: Yuval Harari e as Ficções que nos Programam
O que permite que milhões de estranhos colaborem em uma cidade, obedeçam às mesmas leis e confiem em pedaços de papel ou números em uma tela que chamamos de “dinheiro”?
De acordo com o historiador Yuval Noah Harari, a resposta é a superpotência mais singular da nossa espécie: a capacidade de criar e acreditar em ficções.
Em sua obra seminal, Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, Harari argumenta que o que diferenciou o Homo sapiens de todas as outras espécies não foi uma ferramenta ou o fogo, mas a Revolução Cognitiva — um upgrade no cérebro humano que nos permitiu falar sobre coisas que não existem no mundo físico.
A Realidade Inventada
Um chimpanzé pode alertar seu bando sobre um leão (algo real).
Mas só um humano pode falar sobre o “espírito guardião da tribo”, sobre os “direitos humanos” ou sobre o “valor das ações da empresa X”.
Leões existem. Espíritos, direitos e corporações existem apenas em nossa imaginação coletiva.
Essas são as ficções compartilhadas ou realidades imaginadas.
Elas não são mentiras — uma mentira é quando eu digo que há um leão no rio e você vai lá e não vê nada.
Uma ficção é quando todos nós acreditamos que um pedaço de papel com certas inscrições vale um quilo de pão, e esse sistema funciona porque todos acreditamos juntos.
Dinheiro, nações, leis, deuses, corporações — são todos parte desse “código-fonte” ficcional que roda o sistema operacional da civilização humana.
É o que permite que dois advogados que nunca se viram colaborem com base em um sistema legal que só existe em suas mentes.
É o que faz um soldado arriscar a vida por uma “pátria”, um conceito abstrato.
Reescrevendo o Próprio Código Biológico
Depois de usar as ficções para dominar o planeta, Harari argumenta que estamos voltando essa capacidade criativa para dentro — prontos para dar o passo mais radical da história: o fim do Homo sapiens como o conhecemos.
Não por extinção, mas por evolução deliberada.
Ele projeta que estamos no limiar de superar os velhos problemas da humanidade (fome, pestes, guerras) para buscar novos objetivos quase divinos:
imortalidade, felicidade perpétua e divindade.
Isso se dará por três caminhos:
1. Engenharia Biológica
A capacidade de editar nosso código genético para eliminar doenças, aprimorar a inteligência e estender radicalmente a vida.
2. Engenharia de Ciborgues
A fusão do orgânico com o inorgânico: mentes conectadas à nuvem, membros biônicos, implantes que ampliam habilidades.
3. Engenharia de Vida Não-Orgânica
A criação de inteligências artificiais e consciências que podem existir inteiramente no mundo digital, superando as limitações da biologia.
O Que Nós Queremos Querer?
Essa é a questão mais vertiginosa que Harari deixa em aberto.
Estamos adquirindo poderes de criação e destruição antes atribuídos aos deuses, mas com os mesmos cérebros de caçadores-coletores — cheios de vieses e desejos impulsivos.
Somos deuses insatisfeitos que não sabem o que fazer com tanto poder.
A jornada do autoconhecimento nunca foi tão urgente.
Antes de nos tornarmos deuses, talvez precisemos primeiro entender os humanos que ainda somos.
O primeiro passo para reescrever o roteiro do futuro é reconhecer o código que roda em nós hoje.